O Original Pecado de Luis Inácio
Pouca gente vai negar que Luiz Inácio Lula da Silva é o principal nome da atual conjuntura política brasileira, quem sabe mesmo o maior personagem da história política do nosso país. Como acontece com todo grande personagem, a biografia de Lula é atravessada por contradições, o que faz com que ele desperte todo tipo de sentimentos nos seus admiradores e detratores. Nos últimos tempos, Lula e sua família têm sido alvo de acusações de enriquecimento ilícito, o que, inegavelmente, está comprometendo o capital político daquele que até bem pouco tempo atrás era um dos mais populares e carismáticos homens públicos do Brasil. Neste ensaio, o meu objetivo não é fazer uma defesa do ex-Presidente, até porque há pessoas que podem fazê-lo com muito mais competência. Quero apresentar uma reflexão sobre aquele que me parece ser o pecado original de Luiz Inácio.
Corrupção? É aí que está o “x” da questão? Acredito que não. Para tentar sustentar a hipótese, parto do princípio de que Lula, de fato, é corrupto, um assaltante da coisa pública, um ladrão. Não há qualquer evidência capaz de comprovar cabalmente essas acusações, mas, mesmo assim, para fins de análise, aceito o argumento como verdadeiro. Se Lula é um corrupto, o leitor irá concordar comigo que ele não é o único, não sendo mais ou menos corrupto que os Sérgios Cabrais, Paulos Malufes, Eduardos Cunhas, Agripinos Maias e Eduardos Azeredos, esses sim, picaretas cujas ações criminosas já foram devidamente comprovadas. Por que, então, entre tantos corruptos, o barbudo de Caetés é o mais devassado pela grande imprensa e o mais odiado pelos ditos “brasileiros de bem”? Se o Ministério Público e a mídia hegemônica estão tão preocupados com a corrupção, que talvez seja o mais grave de todos os infortúnios da nação, por que esses outros corruptos não estão estampados, na mesma proporção que Lula, nos editoriais dos principais telejornais brasileiros? Os manifestantes que recentemente foram às ruas exigindo o fim da corrupção no Brasil, o fizeram, muitas vezes, lado a lado com figuras como Agripino Maia e demonstraram um silêncio retumbante em relação às maracutaias de Eduardo Cunha. Já que não parece ser exatamente a corrupção o motivo que coloca Lula na alça de mira dos brasileiros indignados e das acusações que vemos e ouvimos todos os dias, onde estaria o pecado do sindicalista dos nove dedos? Uma breve visada nos valores políticos que herdamos do século XIX pode nos ajudar a compreender melhor o problema.
Diferente do que aconteceu em outros países da América, onde a criação de estabelecimentos de ensino superior data do século XVI, no Brasil, a fundação das primeiras faculdades somente aconteceu no século XIX, quando não mais éramos colônia de Portugal. Logo na primeira constituição da história independente do Brasil, outorgada em 1824, estava prevista a fundação de duas faculdades de direito, uma ao norte e outra ao sul do Império do Brasil. Após algumas disputas, as Faculdades de Direito de Pernambuco e de São Paulo começaram a funcionar em 1827. O tempo passou e o ingresso nos cursos jurídicos se tornou sinal de distinção social e de preparação para a vida política, a ponto de Joaquim Nabuco, no famoso livro “Minha Formação”, ter dito serem as Faculdades de Direito a “antessala da Câmara dos Deputados”. Os estreitos vínculos entre as instituições de ensino jurídico e a política parlamentar foram identificadas com precisão por José Murilo de Carvalho, que no importante livro “A Construção da Ordem” demonstrou que, entre 1830 e 1860, aproximadamente 77% dos homens que ocuparam cargos no poder legislativo (formado na época pelas Câmaras Municipais, pelas Assembleias Provinciais, pela Assembleia Geral e pelo Senado) eram bacharéis em direito.
Não à toa, importantes intérpretes do Brasil apontaram o “bacharelismo” como um dos nossos principais valores sociais. Alberto Torres (1865-1917), por exemplo, no livro “O problema Nacional Brasileiro”, afirmou que o principal dilema da nação estava no fato de os homens públicos “serem quase todos bacharéis que bordavam, sobre a realidade da nossa vida, uma teia de discussões abstratas ou vazias”. Também Gilberto Freyre (1900-1997), em “Sobrados e Mocambos”, criticou a atuação política dos bacharéis, que “afrancesados nada mais faziam do que adornar discursos e copiar leis inadequadas à realidade nacional”. Como podemos perceber, tanto Alberto Torres como Gilberto Freyre relacionam o bacharelismo ao enfeite da palavra, aos excessos retóricos que zelavam mais pelo adequado uso da norma culta do que pelos efeitos práticos da intervenção política.
Talvez seja, exatamente, esse apreço bacharelesco pela retórica enfeitada que faz com que alguns hostilizem Lula, chamando-o de analfabeto e debochando das suas escorregadelas nas concordâncias gramaticais. O curioso é que já ouvi esses ataques saindo da boca de pessoas das mais diversas classes sociais, desde o porteiro do meu prédio até o meu colega professor universitário. O “Lula corrupto” é uma construção discursiva relativamente recente. O “Lula analfabeto” é muito mais antiga, tendo grande permeabilidade no imaginário coletivo. Ainda mais curioso é o fato de que muitos dos doutos sábios que, bacharelisticamente, chamam Lula de analfabeto, jamais irão colocar os pés na maioria das 56 universidades que já agraciaram o ex-Presidente com o título de doutor honoris causa.
Quando falamos em Lula é impossível não vislumbrarmos também aquele que é a sua antítese: Fernando Henrique Cardoso. Diferente de Lula, FHC construiu a sua vida pública no espaço da universidade, tendo sido um dos principais responsáveis, junto com nomes como Florestan Fernandes (1920-1955) e Octávio Ianni (1926-2004), pela delimitação do campo disciplinar das Ciências Sociais no Brasil, ao longo das décadas 1950 e 1960. Até então, os estudos sociais brasileiros ou estavam atrelados ao Estado e voltados à construção da identidade nacional, como aconteceu no século XIX, em especial dentro de instituições como o IHGB, ou eram marcados pelo chamado “ensaísmo”, que tornava bem tênues as fronteiras entre a literatura e a ciência, entre a ficção e a realidade. FHC e seus colegas da chamada “Escola Paulista” se esforçaram para desenvolver métodos e abordagens que fossem capazes de profissionalizar e tornar mais criteriosos os estudos sociais brasileiros, fazendo-o a partir de uma perspectiva marxista. Sim, meus amigos, o ex-Presidente Fernando Henrique Cardoso, um dos principais personagens da história intelectual brasileira, em algum momento, foi marxista. Vejam só como essa vida é louca.
Neste ensaio, não tenho a menor intenção de comparar os serviços que ambos prestaram ao Brasil na condição de chefes de Estado, apesar de eu ter uma opinião muito bem formada sobre o assunto. Prefiro chamar a sua atenção, caro leitor, para a simbologia que cerca esses dois personagens; Lula X FHC! De um lado, está metalúrgico sem ensino superior que, às vezes, não conjuga adequadamente os tempos verbais e tropeça nas concordâncias. Do outro, está o intelectual laureado, poliglota e autor de importantes livros sobre a realidade nacional. Não há dúvidas de que FHC é muito mais representativo do tal bacharelismo do qual Alberto Torres e Gilberto Freyre nos falam do que Lula. Muito mais: Lula é a mais perfeita negação do bacharelismo, ainda que ele tenha vestido terno e gravata e aparado a barba, na expectativa de ser aceito pelos bacharéis que desde sempre dominam a política brasileira. O próprio Luiz Inácio, dotado de reconhecida capacidade política, em algum momento se envaideceu a ponto de achar eles o aceitariam, o tratariam como igual. Jamais o aceitarão como um igual, mesmo que ele tenha, no melhor estilo Lula, conciliado, negociado e cedido, ainda que ele não seja, e nunca foi, digamos assim, um comunistão revolucionário.
Em meio a tantos corruptos, portanto, seria ingênuo achar que a mídia hegemônica e os magistrados que comandam as investigações que hoje são tão conhecidas por todos os brasileiros, perseguem Lula pelo simples fato de ele ser corrupto, o que, repito, ainda não foi provado. O que está em jogo não é corrupção, mas sim aquele que é o pecado original de Lula: a sua condição de sujeito, aquilo que ele é, de onde ele veio, ou melhor, de onde não veio. Lula veio do sertão, da fábrica, e não da universidade. Mesmo assim, Lula se tornou o Presidente brasileiro mais respeitado internacionalmente, aquele que mais abalou as hierarquias sociais que herdamos do complexo Casa grande & Senzala, ainda que não o tenha feito na proporção que gostaríamos.
Um nordestino flagelado pelo sertão, operário, no comando do País, na posição que foi de dois Reis de estirpe europeia, de dezenas de bacharéis em direito e de oficiais do Exército, mais bacharéis fardados que soldados. Como pôde ser ele a exceção, o único? Esse é o original pecado de Luiz Inácio.
Rodrigo Peres, 4 de fevereiro de 2016
www.semrodape.com

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