sábado, 29 de dezembro de 2012
Senhora do tempo
Tornei a vê-la outro dia,aquela senhora que atravessa a rua com vagar,que anda pelas calçadas como se fosse uma rainha.Era de manhã bem cedo e lá estava ela . Vergada sim -mas soberba.O cabelo branco preso num coque no alto da cabeça,o corpo muito magro apoiado na bengala.Parada junto ao meio-fio,do outro lado da rua,preparava-se para atravessar.
Como da outra vez,fiquei espiando de longe,à espera de que o sinal abrisse e ela caminhasse.Usava calça comprida e camisa social,com um lenço no pescoço.E brincos.Elegantíssima para aquela hora da manhã.O sapato era do tipo mocassim,de gáspea alta e sola grossa,talvez pela necessidade de proporcionar um bom apoio para pés tão incertos,tão cansados.Mas nela ficava bem.
Finalmente o sinal abriu e ela começou a atravessar.
Da outra calçada,parada,eu continuava observando.Ela desceu o meio-fio com um passo leve,quase etéreo.Fiquei preocupada.Sei que aquele sinal é para pedestres e, como vivemos sob a tirania do automóvel,ele abre e fecha muito rápido.Os carros não podem esperar.Não vai dar tempo,pensei.Mas a mulher não parecia se importar.
Um passo depois do outro,lá ia ela,com todo vagar do mundo,apoiando-se em sua bengala.O sinal começou a piscar,anunciando que o tempo do ser humano se esgotava,que este precisava abrir caminho para a máquina.
Estremeci,pensando que precisava talvez ajudar aquela senhora,correr até ela e segurá-la pelo braço,para que atravessasse mais rápido.Mas,por algum motivo,não me mexi.Continuei imóvel pregada no chão.
Quando o sinal fechou,ela ainda estava no meio da rua.Mas nenhum carro avançou.Pareciam tímidos,contidos pela realeza da mulher.E,ela foi em frente,sem apressar o passo,sem olhar para os lados,sem temor algum.Com a maior dignidade,talvez orgulho,como se fosse a dona daquele lugar.
Senhora do tempo.
Porque ela é uma dessas pessoas que parecem pertencer a outra época.Parecem querer nos falar de uma outra maneira de viver,mais amena, mais gentil.Aquela senhora caminhava como se ainda estivesse numa Ipanema de 80 anos atrás,num Rio do anos 1930,quando ela foi menina,um lugar com ruas de terra,areais,brisa batendo.Onde todo mundo saía de casa sem pressa, sem precisar se esgueirar
por entre carros e ônibus.
Só quando afinal a senhora subiu a calçada do outro lado,só então,os automóveis arrancaram.E eu a vi afastar-se,no mesmo e impertubável passo.
Senti uma vaga sensação de culpa.Talvez eu devesse ter ido ao seu encontro,tentado ajudar,Mas não pude.Sua dignidade,tamanha, me intimidou.E fiquei parada,olhando,até ela desaparecer numa esquina,carregando sua imponència,maior que o tempo,maior que a máquina,maior que tudo.
Heloísa Seixas.
Retirado da Revista Seleções do Readers Digest,novembro 2012
Assinar:
Postar comentários (Atom)

Nenhum comentário:
Postar um comentário